O cinema de Luca Guadagnino sempre me surpreendeu em sua busca pela originalidade. Seu cuidado com a estética, sua opção pelo protagonismo de personagens marginalizadas e sua ousadia para novas leituras de histórias marcam as texturas de suas narrativas como assinaturas que poucos diretores possuem. Se isso era percebido em seus dois últimos trabalhos – “Me chame pelo seu nome” (2017) e “Suspíria” (2018) – neste novo filme, “Até os ossos” (2022), se confirma. Sua direção mais segura mostra que o diretor não teme arriscar-se em histórias complexas que, normalmente, exigiria respostas lineares e enraizadas na racionalidade. Guadagnino não busca trilhar por essas regras que nossa vontade de saber exige e busca, então, nos cercar com o afeto e a sensibilidade.
Apesar de “Até os ossos” trazer em sua sinopse uma história que cairia facilmente no ridículo, as escolhas e o trato que Guadagnino tem com os elementos narrativos nos levam a um lugar de aproximação, identificação e estranhamento em um delicioso conto de amor e de amadurecimento produz ao ser contrastado com o bizarro.
A jovem Maren Yearly (Taylor Russel) descobre um estranho impulso comportamental de si mesma que a acompanha desde a infância. O seu comportamento canibal que aparece em sua puberdade a faz ser isolada e a fugir do mundo normal. Após seu pai a abandonar, ele deixa uma fita com sua voz gravada explicando sua história e dando pistas sobre o paradeiro misterioso de sua mãe. Maren inicia uma busca por sua mãe e por sua história nas estradas da região mais pobre dos Estados Unnidos. Nessa jornada, Maren descobre outras pessoas como ela, mas encontra em Lee (Timothée Chalamet) alguém de sua confiança e com quem vive um romance. Ambos, então, embarcam na busca por resolver esse mistério pelas estradas marginais estadunidenses.
Por toda a projeção, me vi encurralado pelas imagens e pelos diálogos bem interpretados das personagens que me diziam sobre a analogia à aventura dos marginalizados. Embebida por musicas da dita cultura pop oitentista, me veio a mente imediatamente musicas como Born to Run de Bruce Springsteen e Like a Rolling Stone de Bob Dylan, que tratam dessa vida de fuga, conhecimento, desafios que o real da vida pode nos trazer. A metáfora do canibalismo é ligada com talento aos impulsos sexuais da juventude e que é uma ameaça em personagens velhos como Sully (Mark Rylance) que, com comportamento infantil ainda assim se porta como alguém de um desejo dominador sobre uma jovem. Mas por que o canibalismo? Talvez, seja porque o sexo ainda hoje seja um tabu disfarçado e de pouco impacto, ao contrário do canibalismo que é o ápice do bizarro. Talvez seja a máxima psicanalista de que o sexo é um ato de devorar o outro em sua busca egoica pelo prazer. O diretor não fecha essa semiótica produzindo símbolos, mas aposta em índices para que nós como apreciadores da arte possamos construir nossa própria interpretação, prezando bem pelo conceito de arte aberta.
Guadagnino não pensa em falar de amor com as personas do senso comum. Ele busca ir à margem do populesco, dos esquecidos, dos invisíveis para falar de forma fantástica de uma história de amadurecimento, que é atravessada por tragédias e pela emoção da estrada, dos mistérios que a vida que nos foi tirada tem a nos revelar. Por vezes, lembramos de personagens de filmes de David Lynch, com um teor excêntrico dado a seus movimentos e suas vestes e comportamentos. O carro de Guadagnino margeia o abismo simbólico do surreal, mas não se deixa dragar por ele. E isso aponta para um grande talento do diretor, que sabe muito bem o que se quer e o que não quer que sua obra transpareça. Desta feita, é preciso reconhecer que o trabalho dos atores impulsiona a direção que o filme toma, apesar de que ainda não vejo Chamalet conseguir desvencilhar-se da interpretação blazê que ele costuma dar a seus personagens. Porém, Russel transpira afetos, trazendo camadas que vão do estranhamento, do medo, da paixão e do amor a uma adolescente perdida que busca encontrar a si mesma.
Não é de se admirar que o espectador se encontre viajando em afetos e emoções que o filme de Guadgnino se propõe trazer. A aposta em colocar o canibalismo mais próximo a um efeito de maldição do que no psicologismo tradicional se mostra correta ao evitar um aprofundamento em explicações didáticas que não fariam a história progredir. Afinal, o academicismo poderia posicionar as personagens em um lugar moral e evitar, assim, a bela analogia ao tabu e ao peso do sexo e da culpa de jovens que estão buscando um fim em estradas esquecidas.