O Viajante (1999) de Paulo Cesar Saraceni
Com seu terno de linho bem cortado, chapéu elegante e óculos vanguardista, Rafael (Jairo Matos) é a personificação de tudo que é moderno. Quando o trem rompe a estação da cidade mineira, tudo que se percebe é que o progresso chegou por ali.
Rafael é um caixeiro viajante que anda de cidade em cidade a procura de clientes para seus produtos. Mas poderia ser visto como uma espécie de parasita, que pousa de hospedeiro em hospedeiro, sugando suas forças para continuar vivendo, em uma espécie de círculo vicioso.
E esse personagem é o ponto de partida do filme O Viajante (1999), eleito pela Abaccine como o 79º entre os 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. O drama é uma das obras mais importantes de Paulo Cesar Saraceni. Um dos mentores do Cinema Novo, o cineasta brasiliense marcou seu nome no cinema brasileiro.
Sua filmografia consta 13 longas-metragens, nos quais Saraceni transitou por variados tipos de cinema/épocas, mas que conseguiu exibir um estilo único. Seus filmes tratam das mais variadas formas de representações culturais do Brasil.
Ele começou a carreira como crítico de cinema, passou pelo teatro e foi assistente de direção. Após dois curtas, estreou com Porto das Caixas (1962), primeiro capítulo da “Trilogia da Paixão”, encerrado exatamente com O Viajante (1999) e composto também por A Casa Assassinada (1971).
Suas tramas são pintadas de tragédias, com fartas doses de desequilíbrio social e amores complicados, sejam em filmes campestres ou histórias de carnaval.
E com “O Viajante” não poderia ser diferente. A história que se passa no interior de Minas Gerais é baseado no romance homônimo, mas inacabado de Lúcio Cardoso, e organizado pelo contemporâneo Octávio de Farias.
Sua história começa com Rafael, um caixeiro viajante que chega a uma pequena cidade do interior de Minas Gerais para a festa da padroeira local. Em suas andanças, desperta uma insana paixão em Don’Ana de Lara (Marília Pêra), uma viúva rica. Porém sua postura de orgulho, e que vive uma vida reservada recai sobre o peso de ter um filho, Zeca (Ricardo Graça Mello) incapacitado físico e mentalmente.
Com uma lábia ferina e corpanzil invejável, Rafael conquista também o coração da bela Sinhá (Leandra Leal), uma inocente moça do campo que foi morar para ajudar os tios em uma funerária. Em paralelo, o mestre Juca do Vale (Nelson Dantas), o agente funerário, possui sentimentos embolados em relação a jovem Sinhá.
Um espiral de desejos transforma o dia a dia dos personagens em uma relação de amor e morte. Uma reação em cadeia de tragédias envolvendo Zeca, preso à cadeira de rodas, e Sinhá, elevam os envolvidos à fronteira entre o sagrado e o profano. Dor e culpa se confundem, e seus sentimentos sangram medo, ao se tornarem desumanos e divinos.
De continuidade irreal, a escolha pela montagem de cortes repetidamente abruptos, apenas inflama mais o poder da dramaticidade dos fatos e o drama de seus personagens. Seus sentimentos estão expostos ao máximo, no limite do ardor, prestes a romper a própria alma. E a condução de Saraceni tinge as imagens de um sentimento pesado, de uma angústia maior que a vida.
Seu protagonista tem como contraponto duas mulheres distintas, Don’Ana de Lara e Sinhá.
Don’Ana é uma alma morta que revive nas mãos de Rafael. Sem marido, sem infância, sem uma criança sadia para criar e sem paixão, a persona de Marília Pêra se resume: “sou pessoa formada de ausências”. Se antes vivia trancafiada em casa, vestia roupas apagadas entre cinza e bege, usava os cabelos presos e não se maquiava ou usava joias, agora ela tem planos. Ao despertar a energia sexual reprimida em Don’Ana, Rafael é a representação do diabo.
Já a virgem Sinhá era uma menina muito viva, que sonhava em sair do campo e viver uma vida de plena felicidade na cidade grande. Mas que, após acesa a chama da paixão por Rafael, ela caminha a passos largos para a tragédia que é o fim. Ao despertar o amor verdadeiro em Rafael, Sinhá é a representação do paraíso. Como o caixeiro viajante lembra e define a ela mesma: “Você diz sim e não ao mesmo tempo”.
Sagrado e profano são costurados com fios de tensão nesse (trágico) triângulo amoroso rural. Além disso, Saraceni eleva a beleza das imagens ao limite, ao tratar da morte de forma poética. Com emoções antagônicas, duas sequências são construídas para que a poesia e a morte se encontrem liricamente.
Na despedida de Zeca, o presságio da morte paira sobre os urubus voando sentido o cheiro de carniça. E quando a cadeira de rodas desaba rumo ao inferno, representado pela ribanceira sem fim, a mãe já tem posse de uma rosa, em homenagem antecipada ao morto. O que fazer agora? Resta lamber as próprias feridas, literalmente.
Na ponte que une destinos, mas que nos levará novamente ao sentimento de uma morte trágica no filme, Sinhá ganha contornos de santa. Sua cabeça é partida não apenas pela selvageria, mas também pelas mãos de um velho apaixonado pelo rejuvenescimento impossível. Com a câmera alternando entre o plano e o contra-plongé no trilho do trem, a cena ganha contornos de lirismo em meio à violência.
A trilha sonora tem destaque especial no filme. No campo incidental, a música foi composta pelo maestro Túlio Mourão. O preciosismo é que, por todo o filme, podemos escutar cantos religiosos, folias e congados em meio às canções mais variadas.
Antes de morrer, Tom Jobim deixou a canção “Maria é Dia”, especialmente pensada para ser usada em O Viajante. Seu filho, Paulo Jobim, apresenta um tratamento orquestral minucioso, ao lado de Sérgio Guilherme Saraceni. Outra música sua, em parceria com Vinícius de Moraes, também se faz presente, “Derradeira Primavera”. A tríade Paulo Jobim, Milton Nascimento (que tem participação dramática no filme) e Daniel Jobim, neto de Tom, são os intérpretes das canções.
De decoração barroca, seus cenários tem a presença recorrente de espelhos. Espelhos que refletem sempre a forma que os personagens querem se ver. Refletidos de vida. De dor. De paixão. De medo. É uma busca inalcançável pelos desejos eternos e o devir humano.
E o que dizer da eterna Marília Pêra. Em dado momento, ela declama um poema cita Deus. E com sua soberba interpretação, transfere seus sentimentos doídos para a eternidade. Na tela, se imortaliza como uma mãe que nunca deixará de ter o peso da vida nas costas. Se a princípio está presa ao filho incapacitado, após decidir jogar a cria na ribanceira, o peso da dor passa a não ser visual ou físico, e estará eternamente em seu peito e na sua mente.
Afora o tom expressionista da obra, com intensas emoções derramadas que compõem a história, outra característica do drama é o tom introspectivo e a inserção da poesia. Versos são permeados entre os diálogos, os quais são declamados dentro da trama, com a função de narrativa.
Entre as frestas da brutalidade da vida, o coração palpita. O amor rompe tudo, sem distinguir classe, credo ou gênero. Mas ao tentar equilibrar e controlar suas emoções, ele, o amor, destrói tudo com a força da sua própria natureza. Você não entende o que está acontecendo, mas há cheiro de imprevisibilidade dentro dos pulmões. Você pensa que está trilhando seu próprio caminho, mas na verdade ela o está levando sozinho pelo destino reconstruído pela tragédia.
NOTA: 8,5